sábado, 3 de março de 2012

Reclusão

Minha avó, que Deus a tenha, desistiu de sair de casa quando eu tinha por volta de uns 12 anos de idade. Se a memória não me falha, isso deve ter sido lá pelos anos de 1981, 1982?

 Ela acordava sempre na mesma hora, trocava de roupa, sentava na cama com o radinho de pilha na mão e começava a escutar os programas. E assim ia. Tomava café, sempre café com pão e manteiga, lavava a louça e tornava a sentar na cama. Ao longo do dia executava pequenas tarefas domésticas, sempre ligadas a arrumar alguma coisa na cozinha e lavar a louça. E sempre sentava de volta na cama com o radinho de pilha na mão. Cozinhava pouco, mas sempre os quitutes mais memoráveis. Bolinhos de fubá, doce de mamão ralado, coisas assim. E fazia crochê e tricô de dar inveja. Mas não admitia ser uma boa artesã. Ao cair da tarde ela ligava a TV, assistia umas novelas. A das seis e a das sete porque a das oito tinha temas muito fortes. E o engraçado é que não acendia a luz, era tudo no escuro. Porque na época que ela era criança, não havia luz. Era tudo iluminado por lampião à noite. Então foi assim que ela se acostumou. Ela tinha um ritual, que era praticamente o mesmo todo dia. Eu passava na porta do quarto dela e tentava vislumbrar a figura dela no escuro, com os cabelos brancos e os óculos de armação de resina transparente. E quando percebia o brilho da lente no escuro, que me olhava de volta, eu acelerava o passo para a sala, com vergonha.

Naquela época de criança,lembro que sentia estranheza. Me causava espanto alguém que não tivesse curiosidade, que não quisesse fazer cada dia uma coisa diferente, que não quisesse dar uma olhada no mundo lá fora, que diga-se de passagem, agora percebo, era muito mais interessante do que hoje em dia. Essa era a impressão de criança. Agora, como adulta e bem mais nova do que ela, fico pensando que se hoje pudesse reencontrá-la, ia descrever essas cenas vistas com olhar infantil e ia esperar dela uma explicação. E quem sabe, talvez, eu descobrisse que as aflições que lhe iam por dentro não eram assim tão diferentes das que vão por dentro de mim. Alguma saudade, algum arrependimento, alguma sensação de querer fazer mais do que parece estar ao alcance. Que o radinho de pilha que ela segurava era o equivalente ao moderno iphone que eu seguro hoje em dia. Que o twitter que eu tanto olho, tinha o mesmo sabor do José Carlos Araújo que anunciava tão animadamente um programa que no fim não preenchia a expectativa que ela colocava em cima. Que as palavras hoje lidas, antigamente ouvidas, não chegavam na velocidade ou no conteúdo esperado.

E assim minha avó viveu. Durante uns 10 anos? Que pensando agora me parece pouco mas na época era uma eternidade. Era simplesmente a minha adolescência inteira. Minha avó faleceu com uns 81 anos? Hoje nem me parece tanto assim se acovardar aos 70 anos.

E que minha avozinha me desculpe por expô-la tanto assim. Mas é que hoje, depois de adulta, lembro com mais carinho ainda do seu jeito de ser. Se quando criança eu já intuia algo profundo por trás daquela maneira de viver, mas que eu simplesmente não era capaz de compreender, hoje, não sei se felizmente ou infelizmente, posso dizer que mais carinho ainda eu sinto. Talvez por finalmente entender.

10 comentários:

Pri S. disse...

Que post lindo!

Deu uma saudade da minha bisavó. Também com seus rituais, seu crochê, o horário da novelinha, o bife à milanesa inimitável! rs

:-)

Beth Blue disse...

Nossa Lili, que texto bonito...e olha, eu também entendo a tua vó porque com o passar dos anos estou cada dia mais caseira...sem falar que aqui na Holanda ninguém sai mesmo muito de casa no inverno!

Este fim-de-semana mesmo só sai de casa porque tinha de ir ao supermercado. Tenho dentro de casa tudo que preciso: meus livros, filmes, scraps, internet, etc. Sou capaz de me ocupar sozinha um fim-de-semana inteiro...e isso me mas sentir feliz e culpada ao mesmo tempo. É que percebo que tenho cada vez menos saco pras pessoas.

Será que tem cura? Rsrsrs

Lilly disse...

Ah Pri, parece que a gente voltou à infância, né? E me bateu essa sensação de repente, como se fosse o natural da vida que realmente a gente vai repetindo padrões, ficando igual com o tempo, sei lá...

Lilly disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Lilly disse...

Beth,
eu praticamente abandonei o blog. Mas tive um daqueles flashes de constatação, de ver algo acontecendo comigo e fazer a relação com outra coisa e corri para escrever... Bom, vc sabe bem como é, né?

rsrsrs

Anônimo disse...

Certo dia havia um menino que sonhava em encontrar sua alma gêmea ainda em sua mocidade... Ele estava trabalhando num lugar distante e ali conheceu uma moça de vida sofrida, que o chamou a atenção. Mal ele sabia que aquela moça seria uma pessoa especial em sua vida. Este menino foi conhecendo-a, e a cada dia mais as histórias daquela moça o cativavam, pois ele via algo além da matéria naqueles olhos tristonhos, porém que escondiam a beleza daquela alma, que um dia seria a companheira mais importante de sua vida... O tempo passou e eles se amaram por alguns longos meses...

Até que um dia esse menino se viu perdido diante dos problemas de sua vida e resolveu fugir, deixando sua alma gêmea inconformada.

Ele viajou para um lugar desconhecido, mas nunca esqueceu-se daquele amor verdadeiro que a cumplicidade e o dia-a-dia só lhe enriqueceram a alma.

Hoje esse menino vive na reclusão e infeliz, mas se preparando para um dia ser perfeito e voltar para os braços daquela que um dia o amou com a alma...

Lilly disse...

A perfeição não existe. Talvez o maior mistério da vida resida em aprendermos a lidar com as dificuldades e com nossos próprios defeitos e os dos outros. Justamente pelo fato de não sermos perfeitos é que não podemos julgar e nem acusar ninguém. Existem pessoas que se adequam melhor à nossa maneira de ser. E é a elas que temos nos aliar para viver e aprendar. A confiança é um fator fundamental nessa aliança.

Anônimo disse...

Basta usar a imaginação e você poderá entender a que perfeição ele se refere... Desprenda-se desse mundo materialista de amarguras...

Lilly disse...

Desculpe, Anônimo, mas acho q não há motivos para supor pelo meu post e nem pela resposta que dei, que eu esteja presa a amarguras.

Anônimo disse...

Prezada Autora do Blog,

Se analisarmos o âmago da história descrita, com uma visão além da materialista de que nada é perfeito ou poderá ser aqui na terra... O mancebo emberbe buscava a perfeição na forma com que ele se preparava para ser melhor, permitindo-se sempre querer mais e mais, pois sua amada merecia muito mais do que ele pudera lhe oferecer... O céu era o limite para ele...

Quando nos desprendemos da matéria para viajar pelo universo, nós simplesmente deixamos a felicidade nos conduzir e abrimos o nosso coração para receber o melhor, seja a perfeição inexistente ou a idealização de algo perfeito...

Permita-se sonhar mais...